quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O CÃO E A PATA QUEBRADA. UM HOMEM E AS HUMANIDADES

Faz parte de meu dia-a-dia ensinar redação. E, por consequência, corrigi-las. É uma tarefa que me apetece, embora consuma a alma, como dizem. Gosto porque é um momento em que eu posso articular todo meu conhecimento vernáculo, literário, social, filosófico. Gosto também porque é o momento em que posso conhecer mais meus alunos. Saber o que pensam e como pensam. E gosto ainda porque posso, numa pretensão justificada pela pedagogia, dizer o que pensar e como pensar. Eu até tento isso evitar, mas não me termine um texto dizendo que precisamos nos unir, nem o comece fazendo menções à atualidade. Nada contra quem pensa que o problema da criminalidade acontece atualmente e carece de união para ser resolvido, mas há muitas outras coisas para se pensar, ora!

E de tanto redações corrigir, seria hipocrisia dizer que a mecanicidade que emana de toda tarefa corriqueira não atingiu meu trabalho. Atingiu. Sei como começar, como terminar. Sei onde se escondem os problemas de concordância, de ortografia. Sei como certos períodos vão terminar e até mesmo o número de linhas que a produção contém só de olhá-la. Sou perito em destruncar textos – profissional em amarrá-los. Não que eu seja bom. É o hábito. É a linha de produção de produção de textos: escrevem, corrijo, reescrevem. Tudo seguindo a demanda do mercado, as tendências dos últimos vestibulares. Sou, praticamente, um supervisor de fábrica.

Isso me faz frio. Não poupo críticas. Estimulo, sim, mas sou sincero. Risco, sublinho. Circulo sem dó e, se preciso, escrevo outro texto no verso. Não que eu seja bom. É o hábito. Vibro com textos brilhantes, xingo os não tão e, depois de um calhamaço supervisionado, sinto-me satisfeito, como aquele que termina um pedido. Eu confesso que é uma paixão – supervisionar textos, pesquisar a demanda do mercado, atualizar-me com as tendências e, principalmente, poder ler e palpitar sobre o que os outros escrevem é gratificante. Consome-me a alma, mas depois de uma vez consumida...

Talvez seja essa paixão que me atrai mais textos. Sempre há uma monografia extra para corrigir, uma carta. Um e-mail de um amigo para seu professor. É rotina. E reclamo, como quem reclama da esposa ou do emprego. Hoje foi assim. Ajudei minha menina a corrigir os textos dela. Ela também ensina redação e, por consequência, as corrige. Não foi difícil ajudar. Não que eu seja bom. É o hábito. Logo me adaptei aos símbolos e aos parâmetros de correção e lasquei a esferográfica vermelha nos desvios ortográficos, gramaticais e textuais. Foram duas horas entre duas pilhas de papel – a dos corrigidos e a dos por corrigir. E foi mecânico. Supervisionei como sempre. Rápido – sem dó. Vibrando e xingando. Mas não foi assim todo o tempo. Foi até eu me deparar com um desenho de um cachorrinho com a pata quebrada, ao lado de um homenzinho que o ajudava. Era um homenzinho como outrora eu desenhara, quando não sabia corrigir redações; era um cachorrinho como outrora eu desenhara, quando não lia Marx, Aluísio e teorias da evolução. Era uma redaçãozinha de sexta série.

Fazia muito tempo que não via desenhos em redações. É lógico que esse desenho tinha sua razão. Um texto de sexta série – crianças – sobre a solidariedade – crianças. Era desenho colorido, mal colorido, mal desenhado, em perfil. Não entendo de desenhos, mas bom aquele não era. Era contornado a lápis preto, trêmulo. Pitando em múltiplas direções – uma negação. Porém era um desenho em uma redação. Era a expressão não-verbal da solidariedade. Um cão adoecido e um homem disposto a ajudá-lo. Ora, uma patinha quebrada não se ignora. Carece, pois, de ajuda súbita. Que homem seria indiferente diante de um cachorrinho com a pata quebrada?

Essa redação não li. Corrigi apenas o desenho. E assinalei dez. Não vou ler. Não quero manchar a pureza do desenho com a frieza gramatical, com o cientificismo linguístico-textual, nem com o idealismo literário. Às favas tudo isso. Da redação o tema era solidariedade e um cãozinho com pata quebrada sendo ajudado por um homem já é suficiente. Já expressa o necessário e demonstra o que é solidariedade. Existe nenhuma necessidade de o texto ler para saber que essa criança atingiu seu objetivo. Foi claro e incisivo – uma metáfora perfeita. Tratou o tema com proeza. Um humanista? Não. Um solidariedista, esse garoto. Um especialista em solidariedade, capaz de atingir qualquer leitor, como comigo fez.

E que saudades esse texto despertou em mim de meus cachorros desenhados de perfil. E que saudade em mim despertou da época em que também era um solidariedista, um esperancista e dominava tão incisivas metáforas. É que hoje não domino mais nada. Domino o vernáculo, o literário e o social. Sou mecânico. Sei onde se escondem os problemas de concordância, de ortografia. Sei como certos períodos vão terminar e até mesmo o número de linhas que a produção contém. Sou perito em destruncar textos – profissional em amarrá-los. Sou humanista. Cientista das humanidades. Conheço Marx, Aluísio e a teoria da evolução e não pararia para ajudar um cachorro com a pata quebrada. Não que eu não seja bom. É o hábito. Triste hábito.

Que saudades da humanidade. Às favas suas ciências.

2 comentários:

  1. Lá estava eu, entediado, quando decidi dar uma passada por aqui. E não me arrependi. Não sou lá um grande fã de crônicas, mas tiro o meu chapéu para essa. Não que a minha opinião, como um mero aluno, seja de alguma importância. Sinceramente, me cativou.

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  2. Valeu, Tiago!
    Sua opinião, como aluno, é, com certeza, uma das mais importantes!

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